Domitila Chungara, a coragem da mulher boliviana
Por: Lídia Amorim para Revista Fórum - São Paulo, 07 de Março de 2012
O fogo ainda arde
- Minha vida está relacionada com meu povo. Sou mineira. Filha de mineiro. Esposa de mineiro. E tenho muito orgulho disso.
Castanhos, meio esverdeados, rasgados, diretos. São olhos de Domitila Barrios de Chungara , que como raios-x se fixam nos olhos de seu interlocutor. Que apenas se desviam para concentrar-se em um ponto fixo longe, longe, e recordar tempos de dor e dureza. Olhos que falam por si, com um brilho intenso. Domitila é história não só da Bolívia, mas da América Latina. Sua vida se mescla com um continente que tentaram calar, sufocar. Mas que pulsa, grita, se debate. Intensamente.
Era sábado, Domitila já havia dado uma palestra de manhã e se preparava para outra no período da tarde. Um dia antes estava no departamento de Tarija, onde deu aulas de formação política para campesinos. Com passos cansados, respiração ofegante e um sorriso desconfiado, entrou na sala repleta de cadeiras escolares de sua pequena escola de formação política.
Lênin lançava de soslaio sua mirada firme e Che Guevara contemplava o infinito na clássica imagem de olhos sonhadores. Marx também estava lá, desafiador. Fica bem claro mesmo para um desavisado que não saiba: para Domitila, esses são os homens que deixaram o legado capaz de fazer do mundo um lugar suportável: “Só o socialismo é capaz de melhorar as coisas”, sentencia.
Como parte do Comitê das Donas de Casa da mina de estanho Siglo XX, ela enfrentou e sobreviveu a quatro períodos de ditadura, inclusive ao sangrento Massacre de São João, quando, em 1967, militares do governo de René Barrientos mataram dezenas de trabalhadores mineiros. Junto a outras quatro mineiras protagonizou a greve de fome que derrubou a ditadura de Hugo Bánzer em 1979. Foi exilada do país com seus filhos durante o governo de Luis Garcia Mesa em 1980.
E, depois de tudo isso, quando finalmente pôde voltar à Bolívia, em 1985, teve que desocupar sua casa nas minas por conta da aplicação do decreto 21.060, que deixou centenas de trabalhadores mineiros da região desempregados e sem ter para onde ir. Desde então vive em Cochabamba, na zona de Wayrakasa, onde fundou a escola de formação política e sobrevive com uma pensão do governo de dois mil pesos bolivianos (mais ou menos R$ 571) e da ajuda de seus sete filhos.
Comitê das Donas de Casa
Domitila era ainda bem pequena. E assistiu de perto uma das maiores vitórias da luta popular na Bolívia, que depois se converteu em grande decepção: a Revolução de 1952. Nela, seu pai lutou junto com centenas de obreiros e intelectuais bolivianos que acreditavam ser possível um país mais justo. Levaram ao poder Victor Paz Estensoro, que, quando se sentou na cadeira de presidente, preferiu esquecer o que dizia ao povo nos momentos de combate.
Entre um protesto e outro, o pai de Domitila sempre teve um minuto para explicar aos filhos tudo o que estava passando, principalmente os motivos que o levavam a lutar. Anos depois, ela não resistiu quando foi convidada a participar do recém-fundado Comitê de Donas de Casa da Mina Siglo XX, em 1963. “As mulheres se organizaram e anunciaram na rádio da mina que nunca mais os obreiros iam lutar sozinhos, estariam com suas esposas ao lado”, conta.
Inicialmente, o Comitê das Donas de Casa tinha a função de zelar pela qualidade e preço dos alimentos que a empresa mineira trazia para vender aos trabalhadores e suas famílias. Logo, as donas de casa passaram a cobrar também por educação de qualidade para seus filhos. O próximo passo foi mais audacioso: decidiram lutar junto com seus esposos por melhores condições de trabalho na mina e por mais material de trabalho, como dinamite.
Mas em 1974 as coisas se complicaram. O preço dos alimentos subiu assustadoramente, o que fez com que os mineiros decidissem fazer uma greve por aumento também dos salários. A reação foi forte. O então presidente Hugo Banzer Suarez declarou o acampamento mineiro zona militar, cercou todo o local com tanques, proibiu reuniões, assembleias, marchas, e declarou estado de sítio. Já não havia lugares onde os mineiros e suas famílias pudessem comprar alimentos. As donas de casa se desesperaram.
“Reunimo-nos chorando porque acreditávamos que quando as mulheres lutassem junto com os homens íamos estar melhor, e começamos a pensar que estávamos pior, porque não tínhamos nem o que dar de comer para nossos filhos.” A resposta a tudo isso veio de um dos dirigentes do Sindicato dos Mineiros: “É que a luta, senhoras, não só é social, não só econômica, mas também é política.”
Política
A luta fundamental é a política. Isso ficou na cabeça de Domitila, martelando, indo e voltando. Todos já estavam cansados de tantos politiqueiros e diziam que não, que em política não iam meter-se. Até os dirigentes mais velhos diziam: “Eu vivo do meu trabalho, não vivo da política”.
E os outros diziam que “então, senhores, nunca vai melhorar nossa situação”. Ao final voltaram a se reunir e, discutindo, se deram conta de que todos os seres humanos são políticos desde que nascem. E essa é exatamente uma das primeiras lições da escola de formação política de Domitila.
“O bebê quando começa a chorar é porque quer que troquem suas fraldas ou lhe deem leite. Essa é a primeira manifestação política dos seres humanos. Logo tem seis ou sete anos, andará pelas ruas e de repente vê um doce, um chocolate, um brinquedo. E dirá `mamãe eu quero isso, eu quero`. É o político mais sincero porque a mãe vai brigar, vai bater, mas a ele não importa porque quer e ponto, não tem medo. Logo vem a adolescência. Na minha casa acaba o gás e eu digo ao meu filho mais velho: `filhinho, vai comprar gás`. E ele vai, mas antes diz: `você vai me deixar ir na festa de 15 anos do meu amigo?`. E um dia serão maiores e se casarão. O homem estará buscando trabalho, aumento de salários, a mulher, a mesma coisa. Quando se vai ao mercado, não sei no Brasil, mas aqui na Bolívia há o costume de pedir desconto ou algo a mais. Ou seja, o ser humano é toda a vida político.”
Ser mulher
Na história da criação do Estado Inca, Manco Kapac e Mama Ocllo foram até a Ilha do Sol, no meio do Lago Titicaca, para que, olhando a vastidão, pudessem escolher onde fundar seu império. Juntos, e sob inspiração do deus sol, apontaram na direção do que hoje é Machu Picchu, onde fundaram a sede de seu gigante império.
Manco Kapac e Mama Ocllo. Homem e mulher. A dualidade que se complementa. Os dois, juntos, fundaram um dos maiores e mais poderosos impérios pré-colombinos. Hoje, todavia, a mulher é sagrada para alguns povos e sua opinião, indispensável. Nas comunidades andinas mais afastadas dos centros urbanos, essas são as chamadas mamata’llas.
Mesmo com o exemplo ancestral, na mina a coisa foi bem diferente. Quando as donas de casa se organizaram pela primeira vez na Siglo XX, muita gente dizia, indignada, que agora iam mandar os maridos cozinhar e a cuidar das crianças. Os homens tratavam as mulheres do Comitê como prostitutas. Os militares se aproveitavam e semeavam a desconfiança para enfraquecer as famílias mineiras. “Diziam que nós mulheres tínhamos que ser educadas apenas para descascar bem as batatas, moer a pimenta e olhar as wawas (bebês). Até meu marido tinha ciúmes, queria saber qual dirigente era meu amante, com qual eu estava e coisas assim.”
Juntando essas duas histórias, a da criação do Império Incaico, e a sua própria, Domitila conclui que a discriminação contra a mulher também tem seu objetivo político. Com suas esposas, os mineiros eram mais fortes. Ao educar os filhos, as mulheres são quem determina a força do povo de onde vivem.”A mulher deve ter mais conhecimento que o homem, pela posição que ocupa como mãe, porque ensina seus filhos. E nos fizeram acreditar que os homens devem ir para a rua e as mulheres devem ficar em casa.”
E foi exatamente na força de mulher e mãe que Domitila sacou a fibra para gritar cada vez mais alto. Depois do Massacre de São João, foi torturada mesmo estando grávida de oito meses. No meio da dor, entrou em trabalho de parto. Seu filho nasceu gelado e sem vida, com a mãe inconsciente deitada no chão. A perda fez com que tivesse mais força para seguir. Desde esse momento, já não tinha medo. Sua voz ficou mais forte.
O fogo ainda arde
Em 1985, finalmente, fecharam as minas, sob o pretexto de que a época do estanho havia passado. As minas mais rentáveis até hoje continuam produzindo nas mãos de estrangeiros. Mas os trabalhadores perderam tudo. Aos 50, 40, 30 anos, eram homens sem saúde, sem casa e sem trabalho, muitos deles com numerosas famílias para sustentar.
“E pensávamos no nosso acampamento, nessa casa que ocupei desde que era menina. Pensei que era minha casa. Quando saiu a lei para desocupar os acampamentos, para nos retirarmos, nos olhávamos entre todas as famílias, os vizinhos, nossos filhos, e chorávamos.”
As empresas deram 24 horas para que todos desocupassem as casas. Os mineiros e suas famílias resistiram. Não tinham para onde ir, assim, não tinham o que perder. Conseguiram ficar por mais seis meses no local. Aguentaram muito tempo com marchas e protestos. Mas, ao final, perderam. A nova lei do trabalho, a 21.060, dizia que sim, se podia botar os mineiros sem justificativa e contratar outro pessoal mais jovem, sem tanta força política e com salários mais baixos.
Domitila fala de um tempo em que os mineiros deixaram de ser os trabalhadores sindicalistas mais fortes para ser sombra de gente, homens perdidos e mulheres famélicas pelas ruas. Assim foi a década de 1990. Destruídos? Desaparecidos? Vencidos? De maneira alguma. Com suas dinamites, o trabalhador mineiro ressurge sempre.
Em 2003, por exemplo, as bananas de dinamite destinadas a explorar os minerais que insistem em brotar nas galerias das minas bolivianas explodiram nas ruas contra a privatização da água e, em seguida, do gás, e ajudaram a expulsar do país o presidente Gonzalo Sanchez de Lozada. Os mineiros da Bolívia ainda são quem faz tremer o mais poderoso dos poderosos no país.
“Posso te dizer com muita segurança que o que queriam era acabar com a Central Obreira, que era o que parava tudo. Isso porque sua vanguarda era os mineiros, que sempre fomos unidos e conscientes. Pensaram que com isso a luta acabava, os dirigentes se dispersavam. Mas não. É como uma fogueira. Tentaram apagar tudo esparramando as brasas e o que fizeram foi multiplicar o fogo.”
Assim como as brasas da fogueira que cita, Domitila resiste. Em 1999 teve que retirar o útero e um seio por câncer. Hoje novamente luta, dessa vez contra um câncer nos dois pulmões. Quer viver, garante, com seu olhar profundo. E mesmo preso em um corpo frágil e enfermo, o espírito forte fala e protesta contra a saúde no país, contra o hospital que tem oito leitos para mais de 300 pessoas com câncer. Domitila ainda grita, semeia esperança, desperta nossos espíritos para a luta.
- E o que te dá forças para seguir, Domitila?
- O exemplo das pessoas. Choramos, enterramos nossos mortos, e seguimos adiante. A raiva impulsiona, não paralisa. Nossos pais morreram cuspindo os pulmões, fazendo riqueza para outros, e, todavia não nos resta nada.
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